Carlos foi o ídolo da
Caldense de Poços de Caldas, lá pela segunda metade dos anos 50. Era um goleiro
clássico, que se vestia de negro, andava quase parado no gol, e tinha senso de
colocação e um carisma que, tenho a impressão, nenhum goleiro da cidade
conseguiu igualar. Nem mesmo o histórico Miné, goleiro tão carismático que só
depois que viu que não tinha chances com ele, dona Maria Rodrigues Alves decidiu
se casar com um filho de presidente da República.
Algumas décadas antes, lá pelos anos 30 a cidade não tinha cirurgião, o que era motivo de imensa inveja da vizinha São João da Boa Vista, que tinha um cirurgião que, freqüentemente, precisava ser emprestado a Poços. Até que dona Nini Mourão casou-se com o Dr. Clodoveu Davis, grande figura, mas impropriamente apresentada à cidade como cirurgião. Um dia Miné teve um problema na perna, não sei se nos meniscos ou algum outro tipo de contusão, e decidiram que precisava ser operado. Era a estréia do Dr. Davis. A cidade inteira rumou para a Santa Casa, que ficava na Rua 15 de Novembro. Um locutor da Rádio Cultura ficou no alto da escada, de onde se via a sala de operações, e passou a narrar o jogo. -Entra Miné, de maca. Agora entra o Dr. Davis, coloca as luvas, pede o bisturi para a enfermeira, dá o primeiro corte... Gol contra! Nervoso com a torcida, Dr. Davis seccionou um músculo do Miné, que nunca mais pode jogar bola. Anos depois, um sobrinho do Dr. Davis me confessou que o tio ficava tonto quando via sangue. Depois de Miné, apareceu Carlos, goleiro na histórica campanha dos 57 jogos invictos da Veterana, tempo em que meu pai foi diretor de futebol. Era também o batedor oficial de faltas perigosas e de pênalti do clube. Na época, eu era muito menino para entender algumas coisas que se falava sobre Carlos. Soube muitos anos depois por meu pai e por alguns velhos diretores da Caldense. O goleiro era pedófilo. Nem sei se o termo era esse. Pedófilo, entendo eu, é o sujeito que se prevalece da idade para forçar ou induzir crianças a satisfazer suas taras. Imagino um sujeito doente, frio, calculista. Carlos se apaixonou perdidamente por um menino de 12 anos, cujo nome me eximirei de citar, mas filho de uma pessoa influente na cidade. Foi paixão mesmo, com direito a crises violentas de ciúmes. Muitas vezes, deixaram-se flagrar no campo da Caldense. Em uma das crises bravas, tiveram um quebra-pau em frente à farmácia do meu pai, em pleno centro da cidade, com Carlos desvairado cobrindo o menino de porradas. Meu pai teve que apartar, arrastar Carlos para dentro da farmácia e, depois, impedir que o pai enlouquecido do menino atirasse no goleiro. Os escândalos acabaram abafados em uma cidade pequena, em um período em que a pedofilia era um tabu tão arraigado que ocultavam-se até problemas sérios que ocorriam no internato do Colégio Marista. Tempos depois, apresentado por Mauro ou Belline - provavelmente Mauro - Carlos veio tentar carreira no São Paulo. Sua carreira não passou do período de experiência, porque se envolveu com outro menino, filho de um diretor do clube. Aí acabou-se. Ao contrário de muitas cidades pequenas, do interior, Poços de Caldas sabia ser generosa, não destruir reputações, entender tragédias, separar a vítima do agressor. Graças a isso, o menino de Carlos superou os traumas, cresceu, casou-se, mudou da cidade. Conheci-o no final da adolescência, perfeitamente integrado à vida da cidade. Tão integrado, e poupado, que só muitos anos depois soube desses episódios, em uma conversa com meu pai. Quanto a Carlos, nunca mais se ouviu falar dele. Talvez o Décio Alves de Morais ou o Hugo Pontes, grandes historiadores da Caldense, tenham alguma informação. Mas, depois que soube dos episódios, sempre fiquei com uma pulga atrás da orelha, querendo entender os sentimentos tão ambíguos que se passavam na cabeça daquele goleiro. Às vezes me fica a impressão de que, mais que tara, Carlos foi vítima de um tipo diferente de paixão.
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